Seu Pedro
Aconteceu com o Abrão um tempinho atrás. Como a gente vive num mundo diferente, pessoas são diferentes, as referências são diferentes. Como diria o Claus, cada um cada um.
- Será que estamos próximos? Já passamos por tantas porteiras que já desconfio que exista essa tal de Cachoeira dos Barbosa.
- Bem, pelas indicações do pessoal lá da estrada, era só seguir por esta estradinha de terra e chegaríamos lá.
- É. E o resto do pessoal, estão bem atrás da gente?
- Deixa eu ver...
Pelo retrovisor, lá vinha o outro carro por entre nuvens de poeira.
- Estão.
- Ótimo. Que tal perguntarmos para aquele senhor alí?
- Boa idéia.
No meio do caminho, bem numa bifurcação, um velhinho descansava sob uma velha árvore. Parecia atento e demonstrava a dignidade daqueles que viveram o suficiente para admirar cada pequeno e desapercebido detalhe de nossas vidas. Um belo quadro naquela tarde quente de domingo.
Paramos. Desci e fui em sua direção.
- Bom dia
- Bom dia
- O senhor conhece o sítio dos Barbosa?
- Como não?! É logo alí ao final da estradinha. Ela é estreita e um pouco mal tratada, mas com paciência vocês chegam lá.
- E a Cachoeira? O senhor recomenda?
- Bonita de dar dó! completou orgulhoso.
Baixou o olhar, e de forma graciosa, afastou com o chapéu a abelha que insistia em bisbilhotar a cesta de vime que descansava fielmente ao seu lado. E para acabar com a alegria do alado intruso, cobriu-a por completo com uma toalha xadrez engomada. A abelha, sem alternativas, retirou-se para outros ares, mas sem antes atiçar a minha curiosidade também, tal o zêlo e carinho daquele gesto.
Arrumou cuidadosamente o chapéu por sobre os cabelos brancos. Sorrindo perguntou:
- E o senhor, de onde vem?
- São Paulo
- São Paulo? É muito longe, não?
- Não muito, uns quatrocentos quilômetros até Bueno Brandão.
- Mas é uma boa caminhada até aqui, não?
- De certa forma. Mas é muito pouco, pelas belezas deste lugar.
Pequenos olhos brilharam por debaixo do velho panamá.
- E em São Paulo, planta-se arroz?
- Arroz?
- Sim, arroz
- Bem..., creio que sim. Respondi titubiante.
- Eu plantava arroz.
- Mesmo? ( Resposta-idiota-padrão-para-quando-não-sabemos-o-que-dizer )
- Durante 4 anos, até que vieram os passarinhos.
- ? ( Expressão-idiota-padrão-para-quando-não-sabemos-o-que-dizer )
- Aqueles, os marronzinhos, que comem sementes.
- ! ( Cara-de-total-idiota-padrão-para-quando-não-sabemos-o-que-dizer )
- E como eu tinha dó de matar aquelas criaturinhas, minha mulher e eu decidimos plantar amendoim. Não tenho raiva deles, viu. Eles são criaturas de Deus e tem uma missão aqui também. Como todos nós. O senhor gosta de amendoim?
- Adoro
- Pois bem, a minha mulher faz estes doces. Colocou a canina cesta no colo, ergueu a toalha, e como revelasse um tesouro, um ato de magia, o mundo perfurmou-se de cravo e canela. Surgiram os quitutes de amendoim, em pedaços grandes para quase não caberem na palma de uma mão. Dei razão para as teimosas abelhas...
- Hum... Parecem deliciosos, vou levar alguns.
- O senhor vai gostar e pode até levar para São Paulo. Pergunte para qualquer um da redondeza. São famosos por aqui.
- Tenho certeza.
- E quantos o senhor vai querer?
Hum...deixe-me ver: vou levar alguns, não apenas pelo farto produto, mas como retribuição à informação oferecida. E para ajudá-lo também, pois a vida por estas terras deve ser bastante difícil. Vida de roça. Como na "cidade grande" retribuição com estranhos traduz-se em gastar, dar gorjetas, caixinhas e cervejinhas, fiz as contas: pelo tamanho, calculei que levaria uns bons dias para comer dois pedaços. E de forma superior, fruto do meu profundo senso de justiça interno, eu resolvi levar...
- Quatro pedaços!
Do lado da cesta, ele retirou uma pilha de saquinhos de papel vegetal. Puxou um saquinho, e com a pinça e muita cerimônia, abriu-o com cuidado, para receber o importante conteúdo. Calmamente fechou-o e entregou-me, com o mesmo espírito de quem se despede de um amigo querido:
- Aqui estão senhor.
- Muito obrigado e isto é para o senhor Estendi-lhe uma nota de cinco reais. Quatro reais para os quatro fartos blocos caseiros e um real de gorjeta. Era justo.
Peguei o pacote e entreguei-o para os amigos que esperavam pelo meu retorno. Quando uma educada voz se ouve:
- Ei senhor! Por favor!
- Pois não?
- O senhor não tem trocado?
- Infelizmente não. Mas não se preocupe. O troco pode ficar com o senhor, pela gentileza.
- Mas não posso aceitar. Não é correto.
Engoli em seco. - Por quê ?
- Por que eu devo receber pelo que me é merecido, pelo meus doces. Cada pedaço custa 15 centavos. E eu deveria cobrar do senhor 60 centavos..
De repente, o meu coração encolheu e um profundo constrangimento tomou posse de tudo. Senti vergonha. Não, não era vergonha, era um vazio pela prepotência em assumir que o mundo resume-se à minha realidade urbana. Só saiu de minha boca um...
- Perdão, eu não queria...
- Não se preocupe. É que eu não tenho troco mesmo, sabe como é, por esta estrada não passa muita gente. Mas se o senhor tiver 50 centavos, não teríamos mais problemas, né?
- É. Aqui está. 50 centavos.
Paguei-lhe e com a alma pequena agradeci-lhe por tudo. Por tudo mais que recebi naquele instante. Muito além dos adoráveis doces daqueles montes mineiros. E ao partir, lembrei-me de algo importante. Abri o vidro, gritando: "Ei, senhor, como é seu o nome?". "Pedro! respondeu, enquanto repetia o elegante gesto com as curiosas abelhas".
Terpomo
Por Juliano Motta
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