11.19.2002

[ Carta para alguém bem perto - p. 146-149 - Fernanda Young ]

Levanta da cama fazendo força e caretas. Empurra-se para o banheiro. Larga as roupas pelo chão, anda nua. Não olha o espelho da pia, fato raro. Abre as torneiras do boxe com dificuldade. Quando se enfia na água, fica feliz. Por ter reagido à preguiça gripada com a higiene profunda. Já que, além de tudo, está menstruada. E isso requer cuidados extras com a região vaginal e arredores. Passa o sabonete pelo corpo, já sentindo a saúde melhorar. Deixa que a água execute sua função restauradora; fica de cabeça baixa, como sempre costuma ficar, com a ducha batendo no alto da nuca. Assim, tem a visão da água que escorre dela e vai para o ralo. Gosta de ver água entrando em ralos. Principalmente quando ela está com os cabelos recém-pintados, soltando tinta, feito agora. Sujando a água com rastros negros. Gosta de imaginar que é realmente sujeira o que sai de sua cabeça. Seria bom se conseguisse limpar-se. A água, então, é suja de sangue. Vermelho. Vivo. Em coágulos. Ariana olha para os pedaços de si, a caminho do ralo, e pensa. Em como é grosseiro este desmoronamento íntimo. Uma carnificina. Cruel e periódica como um serial killer.

Repara uma coisa estranha, que vem ocorrendo há algumas menstruações. Antigamente, ela acordava com a calcinha manchada de sangue vermelhão, lindo. Como que falso. Nunca conseguia preparar-se adequadamente para a sanguinolência, pois suas regras não costumam ser cumpridas. Só enquanto tomava pílulas. E odeia esse constrangimento, de sujar os lençóis e edredons. Sim, todas as mulheres odeiam, mas as casadas odeiam pior. Pela falta de sentido naquilo tudo. Mas, nos últimos meses, esses amanheceres ensopados não acontecem mais - a menstruação avisa antes de chegar. Gentileza que não agrada Ariana nem um pouco; chega a sentir saudades do velho estilo entrão de sua inimiga. Porque, hoje, primeiro aparece uma umidade grossa. Ariana calcula as datas e sabe: é ela. Depois, essa umidade pastosa fica com um tom escuro. Prelúdio do sangue. Esquisito, meio marrom. Ela coloca o modess a tempo de ver brotar a golfada inicial, ainda espessa e sombria, embora finalmente com cara de menstruação. Só lá pelo terceiro dia desta saga obscura é que o sangue vem fluido, animal. E a vagina torna-se uma ferida viva. Parece a mordida de um tigre em um outro tigre. Espirrando sangue morno e primordial.

Fecha a torneira, pensando no próximo inconveniente deste período: as manchas nas toalhas. Desenvolveu, com o tempo, para enfrentar esse problema, uma tática simples: limpar-se com um bolo de papel higiênico logo antes de se secar. Procedimento que exige precisão e rapidez. Papel, vagina, lixo, toalha, vagina. Às vezes não é tão eficiente, e volta a sangrar no segundo que antecede o contato da toalha. Quando isso acontece, toma-se por um repentino cansaço; fica esgotada a ponto de chorar. Não é o que ocorre hoje. Hoje, Ariana conseguiu. Venceu a si mesma. Uma ela que ela não quer. Previsível, porém destra. Foi ela, essa Ariana dentro de Ariana, que é, na verdade, a biologia - se há ocasiões em que os pensamentos são os inimigos, noutras enfrentam-se os hormônios -, quem faz essas brincadeirinha. Quem engravidou. Quem foi mãe. Uma macacona protetora. Uma amante insaciável. Ela disputa com Ariana a guarda de sua existência. São, portanto, três. Ela, Ariana. Ela, o corpo. E ela, a mente. Todas conflituosas, possessivas. Todas pretendendo se impor à vida um pouco mais que as outras. Fazendo o todo instável. Forte, mas frágil. Sofredora e pacífica. Mulheres são assim: muitas. Brigando, sempre, para tomar delas mesmas o espaço que entendem ser negado a elas. As mulheres - inimigas das mulheres - são suas piores adversárias. Lutam até o fim para acabar consigo próprias. Uma titica, realmente.

Madonna falou, numa entrevista, que faz xixi nos pés quando ela está no chuveiro. Toda mulher faz xixi nos pés quando está no chuveiro. Madonna disse que xixi é bom para pé-de-atleta. Eis uma mulher que fala o que quer. Possivelmente, poucos homens sabiam que mulheres mijam nos pés até Madonna dizer, mesmo porque eles não precisam passar por esse tipo de constrangimento. Sendo o pau maleável, homens desviam o líquido expelido para outras trajetórias mais seguras. Na mulher, a urina desce pelas pernas e chega aos pés ainda morna. Homens têm nojo dessa idéia; jamais admitiriam dar uma mijada neles próprios. Homens e mulheres são tão diferentes. Graças a Deus.

1 Comments:

At 17 de novembro de 2009 às 05:31, Anonymous Anônimo said...

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